segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Senhora da Rocha

Em dias de tormenta, o homem treme:

- Santa Bárbara bendita, que no céu estás escrita...
As trovoadas, temor dos temores, ecoam nos montes; relâmpagos traçam caminhos de luz, decapitam árvores, decepam caules...

- Senhora da Rocha: valei-nos!

No alto, na capelinha branca, lugar de devoção, protectora de horas difíceis, a Senhora ouve as vozes de gentes que a veneram...

O Criador cansado de harmonia, um dia, em liberdade criadora seguiu o fascínio do desejo, do fazer. Recusou os cânones e a ortodoxia. (Que artista ousaria uma obra assim?) Temor e maravilha, atracção e repulsa, caos e prazer misturam-se. Sem modelo, livre, livre, livre... criou o rio de água e o rio de pedras. Deixou-os, assim, princípio de paraíso e de inferno, de luz e de trevas... espaço de permanente deslumbramento...

Aquela pedra ressuma metal, em vermelho, os líquenes (pelas mãos de quem?) desenham o que os olhos sabem ver.

À noite, adensa-se o mistério: a lua envaidece-se na água, aves nocturnas agoiram o que há-de acontecer, os lobos uivam fomes e cios...

- Nossa Senhora da Rocha: socorrei-nos!

A Senhora quis a sua capelinha naquele espaço. Elegeu-o entre todos. Ali apareceu, conta a memória de quem sabe, numa rocha; ali quis ficar. Diz-se que, teimosamente, regressava ao local, quando por afecto a queriam colocar mais próxima da aldeia, do seu povo. Espaço sagrado, o da Senhora: do alto do Monte domina a rainha piedosa, veladora dos que a veneram.
Que lugar é este?
Um dia, o homem parou e viu. Estupefacto, ouvido atento à loucura dos gritos dos pássaros, à sinfonia das águas, escorrega aqui, pula para acolá, cai além, levanta-se atónito, em bebedeira de cores e de sons, de formas, aterrado, deslumbrado.
Que sentiu?
Uma luz claríssima riscou o céu, baixou ao Zêzere, ao rio de pedra, iluminou os montes... Um estrondo nascido da terra, o pasmo, o pavor. Juntaram outros homens e mulheres acudindo à voz dos deuses. Os cavalos relincharam pelos montes. Velozes voavam no vento como se tivessem asas...
Um rio de água, um rio de pedras, o desnorte num centro, num umbigo de um espaço...
Os montes ali protegem e amarfanham; a água corre, o homem em êxtase, de pé, olhos escancarados, fascinado.
Lugar belo, sagrado, sonho de deuses percebeu-o e soube-o, desde sempre, o homem que parou, viu e orou:
Terra nossa que dais o pão,
Sol bendito que fecundais a terra,
Água pura que saciais a sede,
Seja feita a Vossa Vontade.
Um dia, o homem pegou num sílex, escolheu a laje lisa virada ao monte mais alto e registou uma mensagem, que milhares de anos depois, os olhos do Diamantino, estupefactos, desvelaram:

- Olha um cavalo! Olha um cavalo! Dois: um maior, outro mais pequeno.

E os cavalos soltaram-se das pedras, andam pelos montes velozes, felizes...
E todos os anos, na Primavera, no rio de pedras, no rio de água junto ao poço do Caldeirão se agradecia a fartura, se cumpriam promessas, se suplicavam dias melhores. É a festa no local sagrado. Que os povos celebraram, celebram ao longo de séculos. Em Maio que é o mês das flores, o mês das tempestades, pelas encostas dos montes, ouvem-se romeiros e romeiras:

Nossa Senhora da Rocha...

(Se não acreditam, peçam as fotografias ao Diamantino e ao Belarmino.)

- Maria Antonieta Garcia -Gazeta do Interior, 22 de Março de 2006
(De DBGonçalves)

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