A impaciência do jovem Egica contrastava com a calmaria dessa linda manhã de Primavera. O Sol iluminava e aquecia o solo com o seu beijo quente. A passarada esvoaçava saltitando, sem os problemas daqueles que habitam a terra. Mas o jovem Egica não via, não ouvia, não sentia nada mais à sua volta do que o objecto que o preocupava.
Preparado para montar de repente no seu cavalo veloz — caso surgisse qualquer complicação ou a sua bem-amada aparecesse, tal como estava combinado — Egica encheu o peito de ar para combater a respiração difícil que lhe causava o desespero em que se encontrava. Eulália — o seu grande amor — dissera-lhe dos projectos de seu pai, o rei Ervígio: casá-la com o guerreiro Remismundo. E logo o par amoroso planeou a fuga que lhes daria a liberdade. Mas Eulália não chegava no momento combinado. Eulália demorava-se. Porquê? Teria o rei descoberto o plano que haviam arquitectado com tanta minúcia?
O Sol avançava na sua linha de movimento aparente. E a impaciência de Egica avançava também pelo seu corpo, transmitindo-a ao próprio cavalo, que batia com as patas no solo.
De súbito, reteve a respiração. Alguém contornava a esquina murada, com passo leve e apressado. Era Eulália, finalmente! Ele correu para ela. Tomou-a nos braços.
— Querida! Tenho a sensação de ter esperado uma eternidade!
Ela tremia e falou em voz baixa, como se temesse ser ouvida:
— Egica! Partamos imediatamente! Os soldados de meu pai perseguem-me! Deram pela minha fuga!
O jovem ajudou-a a subir para o cavalo e recomendou-lhe, enquanto montava também:
— Segura-te a mim. O cavalo é veloz...
E, sem mais explicações, Egica esporeou o alazão e partiu como uma seta.
No ar ficou por um momento o eco desse galope desenfreado...
Entretanto, os soldados de Ervígio procuravam o par em fuga. Não se atreviam a regressar sem a missão cumprida. Contudo o dia ia-se prolongando, os cavalos enchiam-se de cansaço e espuma, e o próprio cheiro a Primavera parecia cúmplice na fuga de Eulália e do jovem Egica, envolvendo-os no seu manto de mistério para que não fossem encontrados...
A tarde já ia em meio quando o jovem fez descer a sua noiva e a conduziu junto a um regato, para descansarem.
Receosa, ela olhou em volta.
— Teremos levado grande dianteira?
Ele beijou-lhe a testa coberta de pó.
— Querida, nada receies! Eles perderam-nos de vista e julgam que seguimos para o norte, onde me era fácil encontrar gente amiga. Porém... troquei-lhes as voltas...
— E para onde vamos?
— Vou tentar atravessar a Galiza e procurar refúgio seguro no Mosteiro Máximo, onde sei que se encontra um grande amigo de meu pai. Ele nos ajudará!
Com voz ansiosa, Eulália perguntou:
— Ainda estamos longe?
O braço forte do jovem guerreiro ergueu-se, apontando o horizonte.
— O recorte do Monte Medúlio já se divisa além. E só mais um esforço!
— E é nesse monte que existe o mosteiro que procuras?
— Sim, meu amor. Verás que tudo correrá bem!
Ela sorriu-lhe. Um sorriso quase infantil. Mas logo a sua expressão entristeceu.
— Só por ti receio, Egica!
— Por mim? E por ti? Já pensaste bem o que viria a acontecer se os soldados de teu pai nos apanhassem e conseguissem arrancar-te dos meus braços? Confesso-te que preferiria a morte, mil vezes!
Ela levantou-se como quem descobre de súbito um fantasma.
— Continuemos a cavalgar! Tenho medo! Detesto Remismundo. É traiçoeiro, feio e irascível. Se te apanham, matam-te! Ele odeia-te. Odeia-te porque te inveja!
Egica sorriu, numa tentativa para acalmar a sua bem-amada. Passou-lhe o braço pelo ombro. Puxou-a para si docemente. Mas como ela olhasse em redor com o medo estampado no rosto, ajudou-a de novo a montar, declarando-lhe:
— Na verdade é melhor seguirmos viagem quanto antes. Teremos de chegar ao mosteiro primeiro que a noite desça sobre a montanha.
O cavalo abrandou a marcha. Estava visivelmente cansado. A penumbra que antecede a noite envolvia completamente aquele estranho grupo no cenário grandioso do Monte Medúlio. Lá estava o Mosteiro Máximo, meta dessa carreira que durava há algumas horas. O silêncio naquele local e àquela hora era impressionante. Ouviam-se as próprias respirações, alteradas pelo cansaço e pela emoção.
Descendo da montada, o par fugitivo dirigiu-se para o mosteiro e bateu à porta, discretamente. Um homem com o rosto quase tapado veio abrir. Egica tivera o cuidado de colocar Eulália fora do alcance visual do monge. E perguntou, com certa ansiedade na voz:
— Irmão, perdoai se venho molestar-vos a esta hora. Mas precisava de falar com urgência ao irmão Gondemaro.
O monge porteiro fechou o postigo por onde espreitara. O silêncio voltou a envolver a serra. A espera foi curta, mas o coração de Egica bateu mais forte quando o postigo voltou a abrir-se. Desta vez, porém, assomou um outro rosto, que abriu os olhos num espanto incontido.
— Louvado seja Deus! Quem vejo na minha frente!
Egica sorriu.
— Sim, irmão Gondemaro! Sou eu... o filho do homem que convertestes em Salinas!
— E que me quereis?
— Preciso do vosso auxílio. Trago comigo alguém a quem muito quero e que corre perigo neste momento.
Chamou, com doçura:
— Eulália! Aproxima-te.
A jovem apareceu ante os olhos ainda mais espantados do velho monge. Com voz quase velada, ele perguntou a Egica:
— Quem é esta dama?
O jovem elucidou:
— É Eulália, a filha do rei Ervígio.
O monge levou uma das mãos ao peito.
— Santo Deus! Entrai para onde vos não vejam aqui e contai-me o que neste momento vos aflige.
E, abrindo com precaução singular a grande porta do mosteiro, o monge introduziu na santa morada o casal fugitivo.
Lá fora, a noite começava a cair...
Quando o jovem Egica acabou o relato da sua odisseia, raptando a filha do rei Ervígio para vir ao Mosteiro Máximo de Monte Medúlio procurar um amigo que os casasse, o irmão Gondemaro olhou-os fixamente, num ar aflito.
— Que o Senhor Deus dos Exércitos me inspire, pois não sei que hei-de fazer!
Egica sobressaltou-se.
— Não sabeis... porquê?
O monge explicou:
— A noite envolve agora os campos e isto aqui é deserto! Todavia, no mosteiro não podem ficar mulheres e muito menos a filha do rei Ervígio!
Eulália levantou-se com dignidade.
— Não desejo ser uma sombra para a vossa consciência. Aceito a expulsão e só desejo que a morte me encontre depressa!
Egica protestou, magoado:
— Eulália! Enquanto o meu braço puder erguer-se, nenhum mal te acontecerá! Continuemos descendo a terra lusitana até aos Hermínios e talvez os contrafortes dessa serra sejam mais generosos que este mosteiro!
O monge tapou o rosto com as mãos. Silenciou durante alguns segundos. Depois murmurou, como em oração:
— Que Deus se amerceie de mim!
Destapou o rosto e encarou os jovens.
— Se vos deixo partir, os lobos ou os salteadores poderão matar-vos. Se vos recolho... atraiçoo uma das nossas regras! Que hei-de fazer? Que Deus me inspire!
Egica retorquiu:
— Escolhei, irmão, entre as nossas vidas e a tranquilidade da vossa consciência.
— Ai de mim! A tranquilidade foi-se com o pôr do sol e a vossa aparição. Não há, pois, por onde escolher. Ficai! Vou casar-vos. Agora mesmo e secretamente. Depois emprestarei um hábito à filha do rei Ervígio para que pernoite aqui. Todavia, logo que a luz do dia desponte, dar-vos-ei um salvo-conduto para que possais ir à presença da dama que vive num castelo próximo. Só ela poderá abrigar-vos.
Egica apertou a mão do monge.
— Que Deus vos recompense, irmão Gondemaro!
Quando a manhã voltou a banhar de luz os campos, onde os passarinhos saltitavam cantando e brincando alegremente, encontrou os noivos já prontos para a nova jornada, aliás curta.
Com a alma gritando alegrias, o par enamorado despediu-se do monge Gondemaro. No rosto dos jovens espalhava-se a felicidade. O monge reparou neles e disse, olhando a filha de Ervígio:
— Pareceis outra, esta manhã!
Ela sorriu-lhe.
— Sou feliz, irmão Gondemaro! E não esquecerei quanto vos devo dessa felicidade.
O monge meneou a cabeça.
— Não canteis hossanas antes de tempo! A tempestade ainda não passou. Há que informar vosso pai da decisão que tomastes e obter o seu perdão. Felicidade é o reflexo da paz nos vossos corações. Sem essa paz, nada fará sentido. Mas ide. Deus vos abençoará! Vou enviar ao rei vosso pai um mensageiro de confiança, pedindo-lhe perdão para vós dois... e para mim, que vos uni na presença de Deus sem o consentimento do rei Ervígio.
O jovem godo sorriu para o monge.
— Quanto vos ficamos devendo! Só Deus poderá pagar-vos!
Eulália olhava agora o estranho habitante do mosteiro com certa ansiedade. Egica depressa deu por essa repentina mudança.
— Que tens, meu amor?
Ela fitou o horizonte distante. A sua voz fraca, de menina, esclareceu num suspiro:
— Meu pai era tão meu amigo! E tudo isto por causa de um guerreiro ambicioso que fingiu amar-me e jurou coisas incríveis... Gostava de saber o que fará meu pai depois de escutar o vosso mensageiro, irmão Gondemaro.
Ele prometeu:
— Irei procurar-vos e far-vos-ei ciente da sua resposta, seja ela qual for. Ide, pois, descansada na paz do Senhor, porque a luz do dia já é clara!
Eulália olhou em volta, como se visse aquele cenário pela primeira vez.
— Como é linda esta serra! Os Romanos chamaram-lhe Monte Medúlio? Pois eu penso que ela mais parece uma enorme agra. Quem a cultiva, irmão Gondemaro?
— Os monges do nosso mosteiro e alguns particulares. Todos aqui trabalham. Esta é uma terra abençoada por Deus!
Egica sorriu, repetindo:
— Serra de Agra! Eis um bom nome, com o qual a baptizo.
O monge sorriu também.
— E julgais que assim ficará chamada a serra, só porque vós assim a denominais?
Egica sentenciou, teimoso, com aquela energia que punha em todas as suas palavras e actos:
— Daqui por diante os nossos filhos só conhecerão esta serra como a de Agra. Os nossos netos falarão dela aos seus netos. E assim por diante, através dos séculos!
No rosto do monge nasceu uma expressão de dúvida. Mas sorriu, incitando:
— Experimentai... se isso vos apraz. Tudo é possível quando Deus quer!
E despedindo-se:
— Adeus, irmão. Que o Senhor vos acompanhe!
Alguns meses passaram. Eulália e Egica continuavam no castelo onde o salvo-conduto do monge Gondemaro os abrigara. Não mais tiveram novas dos soldados de Ervígio. Mas a saudade do lar paterno punha uma secreta mágoa no coração de Eulália, horas esquecidas espreitando, do mirante do castelo, o horizonte mudo, para lá da serra de Agra.
Certo dia, Eulália descobriu um vulto caminhando em direcção ao castelo. Desceu a correr, com o coração batendo tão forte que lhe estremecia a túnica alvíssima.
Chegada à porta larga, abriu-a e viu na sua frente o irmão Gondemaro. Sem hesitar, correu para ele.
— Trazeis-me notícias de meu pai?
Ele sorriu e falou num ar descansado:
— Recebi-as ontem ao anoitecer e pus-me a caminho logo de manhã.
— E que novas me trazeis?
— Vosso pai enviou esta resposta: «Se me derem um neto varão, perdoar-lhes-ei a fuga e a desobediência e nomearei Egica meu sucessor. Se me não derem um neto no prazo de um ano, esquecerei que tive uma filha chamada Eulália!»
A jovem uniu as mãos em muda acção de graças. O seu rosto transfigurou-se quase e a tremura das pernas obrigou-a a sentar-se numa pedra da entrada. Entretanto Egica chegava de um passeio a cavalo e, vendo o monge, correu também para ele.
— Muito me alegro em ver-vos!
Eulália não lhe deu tempo a prosseguir. Precisava exteriorizar a sua felicidade:
— Egica! Meu pai perdoa-nos se lhe dermos um neto dentro de um ano e nomeia-te teu sucessor!
Egica olhou a jovem esposa com enleio.
— Querida! Teremos de pedir a Deus que o filho que esperamos seja um rapaz! Nascerá nesta serra de Agra e será um dia rei dos Visigodos!
Como num eco, o monge ajuntou:
— Que Deus vos oiça!
Eulália voltou a olhar o horizonte, que desta vez parecia mais claro, menos fechado. Egica passou-lhe o braço pelos ombros e beijou-a nos cabelos. Esqueceram por momentos a presença do monge. E quando se lembraram dele, viram-no já, amparado ao seu bordão, a caminho do Mosteiro Máximo.
Eles riram, contentes.
Egica murmurou:
— Pobre velho! Nem sequer lhe agradecemos! E deve ser-lhe difícil, esta viagem a pé.
Eulália encostou a sua linda cabeça ao braço forte do marido.
— Levar-lhe-emos o nosso filhinho logo que nasça, para que ele o abençoe!
Ele acariciou-lhe os cabelos.
— E depois?
Eulália suspirou fundo:
— Depois... depois...
A voz sumiu-se-lhe quase, de emoção:
— Depois... partiremos, de novo, mas desta vez… sem medo de sermos perseguidos pelos soldados do rei Ervígio !
Preparado para montar de repente no seu cavalo veloz — caso surgisse qualquer complicação ou a sua bem-amada aparecesse, tal como estava combinado — Egica encheu o peito de ar para combater a respiração difícil que lhe causava o desespero em que se encontrava. Eulália — o seu grande amor — dissera-lhe dos projectos de seu pai, o rei Ervígio: casá-la com o guerreiro Remismundo. E logo o par amoroso planeou a fuga que lhes daria a liberdade. Mas Eulália não chegava no momento combinado. Eulália demorava-se. Porquê? Teria o rei descoberto o plano que haviam arquitectado com tanta minúcia?
O Sol avançava na sua linha de movimento aparente. E a impaciência de Egica avançava também pelo seu corpo, transmitindo-a ao próprio cavalo, que batia com as patas no solo.
De súbito, reteve a respiração. Alguém contornava a esquina murada, com passo leve e apressado. Era Eulália, finalmente! Ele correu para ela. Tomou-a nos braços.
— Querida! Tenho a sensação de ter esperado uma eternidade!
Ela tremia e falou em voz baixa, como se temesse ser ouvida:
— Egica! Partamos imediatamente! Os soldados de meu pai perseguem-me! Deram pela minha fuga!
O jovem ajudou-a a subir para o cavalo e recomendou-lhe, enquanto montava também:
— Segura-te a mim. O cavalo é veloz...
E, sem mais explicações, Egica esporeou o alazão e partiu como uma seta.
No ar ficou por um momento o eco desse galope desenfreado...
Entretanto, os soldados de Ervígio procuravam o par em fuga. Não se atreviam a regressar sem a missão cumprida. Contudo o dia ia-se prolongando, os cavalos enchiam-se de cansaço e espuma, e o próprio cheiro a Primavera parecia cúmplice na fuga de Eulália e do jovem Egica, envolvendo-os no seu manto de mistério para que não fossem encontrados...
A tarde já ia em meio quando o jovem fez descer a sua noiva e a conduziu junto a um regato, para descansarem.
Receosa, ela olhou em volta.
— Teremos levado grande dianteira?
Ele beijou-lhe a testa coberta de pó.
— Querida, nada receies! Eles perderam-nos de vista e julgam que seguimos para o norte, onde me era fácil encontrar gente amiga. Porém... troquei-lhes as voltas...
— E para onde vamos?
— Vou tentar atravessar a Galiza e procurar refúgio seguro no Mosteiro Máximo, onde sei que se encontra um grande amigo de meu pai. Ele nos ajudará!
Com voz ansiosa, Eulália perguntou:
— Ainda estamos longe?
O braço forte do jovem guerreiro ergueu-se, apontando o horizonte.
— O recorte do Monte Medúlio já se divisa além. E só mais um esforço!
— E é nesse monte que existe o mosteiro que procuras?
— Sim, meu amor. Verás que tudo correrá bem!
Ela sorriu-lhe. Um sorriso quase infantil. Mas logo a sua expressão entristeceu.
— Só por ti receio, Egica!
— Por mim? E por ti? Já pensaste bem o que viria a acontecer se os soldados de teu pai nos apanhassem e conseguissem arrancar-te dos meus braços? Confesso-te que preferiria a morte, mil vezes!
Ela levantou-se como quem descobre de súbito um fantasma.
— Continuemos a cavalgar! Tenho medo! Detesto Remismundo. É traiçoeiro, feio e irascível. Se te apanham, matam-te! Ele odeia-te. Odeia-te porque te inveja!
Egica sorriu, numa tentativa para acalmar a sua bem-amada. Passou-lhe o braço pelo ombro. Puxou-a para si docemente. Mas como ela olhasse em redor com o medo estampado no rosto, ajudou-a de novo a montar, declarando-lhe:
— Na verdade é melhor seguirmos viagem quanto antes. Teremos de chegar ao mosteiro primeiro que a noite desça sobre a montanha.
O cavalo abrandou a marcha. Estava visivelmente cansado. A penumbra que antecede a noite envolvia completamente aquele estranho grupo no cenário grandioso do Monte Medúlio. Lá estava o Mosteiro Máximo, meta dessa carreira que durava há algumas horas. O silêncio naquele local e àquela hora era impressionante. Ouviam-se as próprias respirações, alteradas pelo cansaço e pela emoção.
Descendo da montada, o par fugitivo dirigiu-se para o mosteiro e bateu à porta, discretamente. Um homem com o rosto quase tapado veio abrir. Egica tivera o cuidado de colocar Eulália fora do alcance visual do monge. E perguntou, com certa ansiedade na voz:
— Irmão, perdoai se venho molestar-vos a esta hora. Mas precisava de falar com urgência ao irmão Gondemaro.
O monge porteiro fechou o postigo por onde espreitara. O silêncio voltou a envolver a serra. A espera foi curta, mas o coração de Egica bateu mais forte quando o postigo voltou a abrir-se. Desta vez, porém, assomou um outro rosto, que abriu os olhos num espanto incontido.
— Louvado seja Deus! Quem vejo na minha frente!
Egica sorriu.
— Sim, irmão Gondemaro! Sou eu... o filho do homem que convertestes em Salinas!
— E que me quereis?
— Preciso do vosso auxílio. Trago comigo alguém a quem muito quero e que corre perigo neste momento.
Chamou, com doçura:
— Eulália! Aproxima-te.
A jovem apareceu ante os olhos ainda mais espantados do velho monge. Com voz quase velada, ele perguntou a Egica:
— Quem é esta dama?
O jovem elucidou:
— É Eulália, a filha do rei Ervígio.
O monge levou uma das mãos ao peito.
— Santo Deus! Entrai para onde vos não vejam aqui e contai-me o que neste momento vos aflige.
E, abrindo com precaução singular a grande porta do mosteiro, o monge introduziu na santa morada o casal fugitivo.
Lá fora, a noite começava a cair...
Quando o jovem Egica acabou o relato da sua odisseia, raptando a filha do rei Ervígio para vir ao Mosteiro Máximo de Monte Medúlio procurar um amigo que os casasse, o irmão Gondemaro olhou-os fixamente, num ar aflito.
— Que o Senhor Deus dos Exércitos me inspire, pois não sei que hei-de fazer!
Egica sobressaltou-se.
— Não sabeis... porquê?
O monge explicou:
— A noite envolve agora os campos e isto aqui é deserto! Todavia, no mosteiro não podem ficar mulheres e muito menos a filha do rei Ervígio!
Eulália levantou-se com dignidade.
— Não desejo ser uma sombra para a vossa consciência. Aceito a expulsão e só desejo que a morte me encontre depressa!
Egica protestou, magoado:
— Eulália! Enquanto o meu braço puder erguer-se, nenhum mal te acontecerá! Continuemos descendo a terra lusitana até aos Hermínios e talvez os contrafortes dessa serra sejam mais generosos que este mosteiro!
O monge tapou o rosto com as mãos. Silenciou durante alguns segundos. Depois murmurou, como em oração:
— Que Deus se amerceie de mim!
Destapou o rosto e encarou os jovens.
— Se vos deixo partir, os lobos ou os salteadores poderão matar-vos. Se vos recolho... atraiçoo uma das nossas regras! Que hei-de fazer? Que Deus me inspire!
Egica retorquiu:
— Escolhei, irmão, entre as nossas vidas e a tranquilidade da vossa consciência.
— Ai de mim! A tranquilidade foi-se com o pôr do sol e a vossa aparição. Não há, pois, por onde escolher. Ficai! Vou casar-vos. Agora mesmo e secretamente. Depois emprestarei um hábito à filha do rei Ervígio para que pernoite aqui. Todavia, logo que a luz do dia desponte, dar-vos-ei um salvo-conduto para que possais ir à presença da dama que vive num castelo próximo. Só ela poderá abrigar-vos.
Egica apertou a mão do monge.
— Que Deus vos recompense, irmão Gondemaro!
Quando a manhã voltou a banhar de luz os campos, onde os passarinhos saltitavam cantando e brincando alegremente, encontrou os noivos já prontos para a nova jornada, aliás curta.
Com a alma gritando alegrias, o par enamorado despediu-se do monge Gondemaro. No rosto dos jovens espalhava-se a felicidade. O monge reparou neles e disse, olhando a filha de Ervígio:
— Pareceis outra, esta manhã!
Ela sorriu-lhe.
— Sou feliz, irmão Gondemaro! E não esquecerei quanto vos devo dessa felicidade.
O monge meneou a cabeça.
— Não canteis hossanas antes de tempo! A tempestade ainda não passou. Há que informar vosso pai da decisão que tomastes e obter o seu perdão. Felicidade é o reflexo da paz nos vossos corações. Sem essa paz, nada fará sentido. Mas ide. Deus vos abençoará! Vou enviar ao rei vosso pai um mensageiro de confiança, pedindo-lhe perdão para vós dois... e para mim, que vos uni na presença de Deus sem o consentimento do rei Ervígio.
O jovem godo sorriu para o monge.
— Quanto vos ficamos devendo! Só Deus poderá pagar-vos!
Eulália olhava agora o estranho habitante do mosteiro com certa ansiedade. Egica depressa deu por essa repentina mudança.
— Que tens, meu amor?
Ela fitou o horizonte distante. A sua voz fraca, de menina, esclareceu num suspiro:
— Meu pai era tão meu amigo! E tudo isto por causa de um guerreiro ambicioso que fingiu amar-me e jurou coisas incríveis... Gostava de saber o que fará meu pai depois de escutar o vosso mensageiro, irmão Gondemaro.
Ele prometeu:
— Irei procurar-vos e far-vos-ei ciente da sua resposta, seja ela qual for. Ide, pois, descansada na paz do Senhor, porque a luz do dia já é clara!
Eulália olhou em volta, como se visse aquele cenário pela primeira vez.
— Como é linda esta serra! Os Romanos chamaram-lhe Monte Medúlio? Pois eu penso que ela mais parece uma enorme agra. Quem a cultiva, irmão Gondemaro?
— Os monges do nosso mosteiro e alguns particulares. Todos aqui trabalham. Esta é uma terra abençoada por Deus!
Egica sorriu, repetindo:
— Serra de Agra! Eis um bom nome, com o qual a baptizo.
O monge sorriu também.
— E julgais que assim ficará chamada a serra, só porque vós assim a denominais?
Egica sentenciou, teimoso, com aquela energia que punha em todas as suas palavras e actos:
— Daqui por diante os nossos filhos só conhecerão esta serra como a de Agra. Os nossos netos falarão dela aos seus netos. E assim por diante, através dos séculos!
No rosto do monge nasceu uma expressão de dúvida. Mas sorriu, incitando:
— Experimentai... se isso vos apraz. Tudo é possível quando Deus quer!
E despedindo-se:
— Adeus, irmão. Que o Senhor vos acompanhe!
Alguns meses passaram. Eulália e Egica continuavam no castelo onde o salvo-conduto do monge Gondemaro os abrigara. Não mais tiveram novas dos soldados de Ervígio. Mas a saudade do lar paterno punha uma secreta mágoa no coração de Eulália, horas esquecidas espreitando, do mirante do castelo, o horizonte mudo, para lá da serra de Agra.
Certo dia, Eulália descobriu um vulto caminhando em direcção ao castelo. Desceu a correr, com o coração batendo tão forte que lhe estremecia a túnica alvíssima.
Chegada à porta larga, abriu-a e viu na sua frente o irmão Gondemaro. Sem hesitar, correu para ele.
— Trazeis-me notícias de meu pai?
Ele sorriu e falou num ar descansado:
— Recebi-as ontem ao anoitecer e pus-me a caminho logo de manhã.
— E que novas me trazeis?
— Vosso pai enviou esta resposta: «Se me derem um neto varão, perdoar-lhes-ei a fuga e a desobediência e nomearei Egica meu sucessor. Se me não derem um neto no prazo de um ano, esquecerei que tive uma filha chamada Eulália!»
A jovem uniu as mãos em muda acção de graças. O seu rosto transfigurou-se quase e a tremura das pernas obrigou-a a sentar-se numa pedra da entrada. Entretanto Egica chegava de um passeio a cavalo e, vendo o monge, correu também para ele.
— Muito me alegro em ver-vos!
Eulália não lhe deu tempo a prosseguir. Precisava exteriorizar a sua felicidade:
— Egica! Meu pai perdoa-nos se lhe dermos um neto dentro de um ano e nomeia-te teu sucessor!
Egica olhou a jovem esposa com enleio.
— Querida! Teremos de pedir a Deus que o filho que esperamos seja um rapaz! Nascerá nesta serra de Agra e será um dia rei dos Visigodos!
Como num eco, o monge ajuntou:
— Que Deus vos oiça!
Eulália voltou a olhar o horizonte, que desta vez parecia mais claro, menos fechado. Egica passou-lhe o braço pelos ombros e beijou-a nos cabelos. Esqueceram por momentos a presença do monge. E quando se lembraram dele, viram-no já, amparado ao seu bordão, a caminho do Mosteiro Máximo.
Eles riram, contentes.
Egica murmurou:
— Pobre velho! Nem sequer lhe agradecemos! E deve ser-lhe difícil, esta viagem a pé.
Eulália encostou a sua linda cabeça ao braço forte do marido.
— Levar-lhe-emos o nosso filhinho logo que nasça, para que ele o abençoe!
Ele acariciou-lhe os cabelos.
— E depois?
Eulália suspirou fundo:
— Depois... depois...
A voz sumiu-se-lhe quase, de emoção:
— Depois... partiremos, de novo, mas desta vez… sem medo de sermos perseguidos pelos soldados do rei Ervígio !
- Gentil Marques, Lendas de Portugal
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