(...) Na Escritura sagrada temos dois corvos muito célebres: o de Noé, e o de Elias.
E a este diz o Santo que se comparam os cabelos de um ou outro Sansão, depois de comparados às palmas. E por quê?
Porque a este corvo o escolheu Deus para se servir dele como de seu Irmão da Misericórdia.
Muitos neste mundo alcançam os cargos só pelo merecimento do seu vestido: e este merecimento não lhe faltava também ao corvo de Elias pela cor das penas, e semelhança da veste preta: Nigrae quasi corvus: mas Deus, posto que tão amigo das proporções, não o elegeu só por esta para ministro e Irmão da sua Misericórdia, senão porque o era nas obras dela: Ille pascendi Prophatae memor.
Andava Elias no tempo daquela grande fome, pobre, fugitivo e desterrado, e o corvo, com admirável pontualidade e perpétua assistência, todos os dias pela manhã e à tarde, lhe levava não só o necessário senão também com muita abundância: Panem, et carnes mane, similiter panem, et carnes vespere. E como este corvo era também Irmão da Misericórdia (e Irmão da Mesa) por isso Salomão à comparação das palmas ajuntou a do corvo, para que se veja quão devidas são, e quanto se devem aos Irmãos da Misericórdia as vitórias.
A propósito da nossa e deste corvo me lembra a diligência e valor do outro tâo famoso e conhecido, que foi o primogenitor daqueles, cuja memória e descendência se conserva na nossa Sé de Lisboa. Saiu às praias de Portugal o corpo defunto do nosso Padroeiro S. Vicente, voou logo o corvo como Irmão da Misericórdia aos ofícios da sepultura, e porque um lobo naquela ocasião lhe quis dar outra bem diferente na sua voracidade, o valente e animoso corvo ferindo-o com o bico, e sacudindo-o com as asas, lhe fez tal guerra que com mais sangue que a fome que trazia dele, deixou a presa e a empresa, e com tanto medo, como se fora de um Leão, se retirou fugindo. Isto quanto aos Irmãos da Misericórdia activa.
(...)
- Padre António Vieira, Sermões
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