segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Inteireza de um Juiz

No tempo de el rei D. João II, corria em Lisboa demanda, sobre objecto de grande
valor, entre el rei e o contador-mór da cidade.

Um dos juizes, que haviam de julgar o pleito, era o vigário de Thomar, que depois foi bispo da Guarda, e prior de Santa Cruz de Coimbra.

Os juizes sentencearam contra el rei, o qual sabendo isto, e lendo informação de que o primeiro, que votara contra elle, fora o benemérito vigário de Thomar, mandou-o chamar á sua presença.

Veiu elle, não sem algum receio; porque não conhecia bem a grande alma, e as excellenles virtudes do príncipe.

Este porém, longe de mostrar-lhe algum desabrimento, pelo contrario lhe disse:

«que sabia, que fora elle o primeiro que dera o voto, e que os outros juizes haviam
seguido, que lhe louvava e agradecia esta inteireza, própria de um varão honrado, e de um juiz virtuoso, e que em prova do quanto se agradara do seu proceder, tinha já dado ordem a António de Faria, para lhe dar duzentos cruzados para suas despezas.»

Assim prezava D. João II os actos de justiça, e assim mostrava quanto lhe era odiosa a vil adulação, maiormente quando com ella se ofendesse aquella primeira e principal virtude dos grandes reis.

- Panorama

4 comentários:

Criptex disse...

No tempo de el rei D. João II, corria em Lisboa demanda, sobre objecto de grande
valor, entre el rei e o contador-mór da cidade.(...)

e o objecto?

Sigillum disse...

O "objecto" é de somenos importância; um diferendo como qualquer outro.

O importante reside na inteireza de carácter, tanto do Vigário de Thomar quanto do inteiro D. João II.

Criptex disse...

Pois.

Mas,vou mais pela coragem do Vigário.
É sabido que D.João II ganhou certo gosto pela aplicação de «justiça» pelas suas próprias mãos. Sujando-as ele próprio de sangue antes de qualquer juízo ou defesa do «condenado».
Ainda assim, foi um governante bastante eficaz. Muito, ainda hoje lhe ficamos a dever.

E o objecto?

Sigillum disse...

O que releva são os princípios, o "objecto" é displicente neste contexto.

Para obviar, de novo, sobre o "objecto", ele é ausente da crónica, como aliás pode ler-se no publicado.