quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cabicanca, de Aguiar da Beira

Ao pé da capella de Nossa Senhora do Castello estão as ruinas de um castello romano, de cantaria.

Tambem perto d’esta capella existiu a egreja de S. Pedro (ainda existem as ruinas da antiga matriz e da respectiva residencia n’um pequeno valle, ainda chamado de S. Pedro, ao sul da villa) antiga matriz da freguezia, que por ser distante da villa, e por se partir a commenda de Christo (do real padroado) metade para Santo Eusebio de Aguiar e metade para S. Pedro de Coruche, foi abandonada, erigindo-se em egreja parochial a de Santo Eusebio.

As más linguas, porém, attribuem o abandono da egreja de S. Pedro ao apparecimento da cabicanca, celeberrima a medonha passarola, que atterrou os aguiarenses.
Conta-se assim o caso.

Appareceu aqui, ha seculos, uma cegonha que foi fazer o seu ninho na torre da egreja matriz (S. Pedro) como é do costume d’estas aves.

O povo ficou horrorisado á vista de tão monstruoso passaro (a que deu o nome de cabicanca) e não só deixou de ir alli á missa, mas até de transitar por aquelles sitios. O mesmo parocho fugiu da residencia com a sua familia, e foi celebrar os officios divinos na capella de Santo Eusebio, ao N. da villa e actual matriz.
Andava o povo assim atterrado, quando aconteceu passar por alli Martinho Affonso (de alcunha Escorrupicha, e de profissão almocreve) armado de uma espingarda, arma recentemente descoberta.

Vendo elle que a villa estava mergulhada em profunda magua, desamparando o povo d’ella a agricultura, os negocios, os divertimentos etc., etc., e curando sómente de se preparar para o juizo final, que julgava proximo, se compadeceu de tanta desgraça e prometteu dar-lhe remedio.

Dirige-se á egreja, espera que o passaro saia do ninho, aponta, dispara e... zás! ferra com a cabicanca estatelada morta no meio do chão. O povo, ao estrondo do tiro e aos gritos victoriosos do cabicanquicida, corre em tropel a ver o enorme bico, o esgalgado pescoço, as longas pernas e o feio corpo do bicho. Todos o queriam ver ao mesmo tempo, pelo que houve pancadaria a valer (e dizem alguns que houve até mortes, mas o auto da cabicanca não o diz).

Não se póde descrever a alegria d’esta gente, nem as festas que fizeram a Martinho Affonso, que foi levado em triumpho por toda a villa, dando-se os mais freneticos vivas, muitos presentes e grande numero de garrafas de vinho (de que o almocreve pelos modos era grande amador) dizendo-lhe todos «escorrupicha» e elle escorrupichava, e d’isto lhe ficou a alcunha de Escorrupicha.

Passados oito dias das mais estrondosas demonstrações de jubilo e agradecimento, se foi o bom do meu amigo Escorrupicha seguindo a sua jornada, coberto de presentes, coroado dos louros da victoria e com um nome immortal que irá de geração em geração até á mais remota posteridade.

O parocho ficou pedindo em todos os domingos um padre nosso por Martinho Affonso, o destruidor da cabicanca.

Advirto porém aos que forem a Aguiar da Beira e tiverem amor ás costellas, que não fallem alli na cabicanca nem no escorrupicha, senão, depois não se queixem!

- Augusto Pinho Leal, Portugal Antigo e moderno

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