quinta-feira, 30 de junho de 2011
quarta-feira, 29 de junho de 2011
terça-feira, 28 de junho de 2011
De Invocação a Nossa Senhora da Assunção
Igreja de Santa Maria da Álcaçova
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Foi mandada edificar em 1090, pelo Presbítero Vermudo (ele próprio afirmou que a ergueu desde os alicerces), por ordem do Conde D. Sesnando, com a condição de metade das rendas dela ficarem pertencendo à Sé de Coimbra, no tempo do Bispo D. Crescónio.
A escritura de doação data de 24 de Dezembro de 1095.
Reza a tradição, que esta igreja foi trasladada de um monte, situado a noroeste da vila cerca de "tres tiros de espingarda", onde se conservavam vestígios da Igreja de S. Gens.
A igreja foi reedificada no primeiro terço do século XII e sagrada entre 1128 e 1131 (conforme consta na inscrição), no priorado de D. Sisnando, sagração realizada pelo Bispo D. Bernardo.
Em 1245, por deposição do rei D. Sancho II, o Bispo D. Tibúrcio, com alguns cónegos da Sé, sentindo-se pouco seguros em Coimbra, refugiaram-se na alcáçova do castelo e estabeleceram-se junto à Igreja.
Por morte, D. Tibúrcio foi sepultado neste templo.
Este templo sofreu algumas reformas em 1285, como refere o testamento de João Guilherme Sancino.
Foi reedificada definitivamente no primeiro quartel do século XVI, obra atribuída ao arquitecto Francisco Pires, sob a ordem do bispo-conde D. Jorge de Almeida, que aproveitou para as alvenarias o da demolição, tendo-se empregado mesmo no 1º arco à direita uma lápide fúnebre de 1230.
No século XVIII, ainda tinha a irmandade do Santíssimo Sacramento e, como filiais, as vigararias de Reveles, Alfarelos, Santo Varão, Meãs e o curato do Seixo.
Manteve-se igreja colegiada até à data da sua extinção, em finais do século XIX e detinha um pároco, 5 beneficiados e um tesoureiro.
A igreja foi paroquial desde sempre, sendo a última consagração datada de 30 de Julho de 1874, por Decreto de D. Manuel Correia de Bastos Pina, que unia as duas paróquias numa só: Santa Maria de Alcáçova e São Martinho, com sede nas duas igrejas. O edifício sofreu obras pelo Ministé rio da Guerra e depois pelos Monumentos Nacionais em 1933.
Sofreu obras de beneficiação entre 1962 e 1994.
No campo da arquitectura, apresenta uma composição estrutural simples, com três naves de cinco tramos e três capelas absidais.
Nave central levantada, sem janelas acima das arcadas.
Cabeceira de composição complexa: arcos abertos entre as capelas laterais e a mor, em plano, dão a aparência de um transepto e pilares compostos.
As três ábsides são semi-circulares, com as paredes externas em quase continuação das laterais das naves.
Frontaria com porta de arco quebrado (ogival), de dois colunelos e breves capitéis, acompanhados de molduras finas.
Sobrepõe-se-lhe um óculo pequeno (rosácea), de bastantes molduras concêntricas.
Acima da porta crava-se o brasão de D. Jorge de Almeida. Campanário angular, com torre baixa, no cunhal direito.
Tem três retábulos com imagens, salientando-se Nossa Senhora da Vitória, Nossa Senhora do Ó, Santas Mães, Santa Luzia, Santa Apolónia, S. Brás e o Arcanjo S. Gabriel.
(fonte: C. M. Montemor-o-Velho)
segunda-feira, 27 de junho de 2011
Estrela do Ocidente
Me vou guiando agora, que anoitece.
Rei Mago que procura e desconhece
O caminho,
Sigo aquele que adivinho
Anunciado
Nessa luz só de luz adivinhada,
Infância humana, humana madrugada.
Presépio é qualquer berço
Onde a nudez do mundo tem calor
E o amor
Recomeça.
Leva-me, pois, depressa,
Através do deserto desta vida,
À Belém prometida...
Ou és tu a promessa?
- Miguel Torga
domingo, 26 de junho de 2011
sexta-feira, 24 de junho de 2011
quinta-feira, 23 de junho de 2011
Corpus Christi
- Lisboa, 20 de Junho de 1688 - Manuel Lopes de OliveiraA festa do Corpo de Deus foi instituida para dar a Jesus Christo culto particular no Santissimo Sacramento, porque os dilatados oficios e cerimonias funebres de quinta feira maior, não dão logar para a celebridade d’este sacrosanto misterio.
Urbano IV foi o pontífice, que no anno de 1264 determinou, para esta eucharistica solemnidade, a primeira quinta feira depois da festa da Santissima Trindade.
Diz certo historiador francez, que o bispo de Liege, na Alemanha baixa, já antes da assumpção de Urbano IV ao pontificado, havia instituido na sua diocese esta festa, e que depois o dito pontifice a instituira com bulla particular, a qual por causa das guerras dos guelfos e gibelinos, que n’aquelle tempo perturbavam a egreja romana, não teve effeito; mas no concilio geral de Vienna, celebrado no anno de 1311, no pontificado de Clemente V, na presença dos reis de França, Inglaterra e Aragão, foi a dita bulla confirmada, e publicada em toda a egreja catholica.
No anno de 1316 o papa João XXII, para estender esta celebridade, acrescentou—lhe outavario, e mandou que em procissão se levasse publicamente o Divino Sacramento. Por ordem de Urbano VIII, o doutor angélico S. Thomaz, que então estava lendo theologia na cidade de Orviedo, compoz o officio que no dia d’esta festa se reza, mas primeiro que na egreja universal se rezasse, na egreja leodiense se rezava outro composto por um monge cisterciense, que ainda hoje se conserva no cartorio de Liege.
Foi esta a origem da procissão; agora vejamos como d’antes se fazia em Portugal.
As noticias impressas, mais antigas que nós conhécemos da procissão de Corpus, são: O regimento de Coimbra, de 1517, publicado por J. Pedro Ribeiro no t. 3.° das Dissertações Chronologicas, e a narrativa que o sr. A. Herculano fez no Monge de Cister, referida ao anno de 1484, renado de D.Joâo II. E posto que esse auto se passasse em Setubal o douto historiador nos disse que se tinha servido do regimento da procissão de Lisboa, que achara no archivo da camara d’esta cidade, o qual condizia, pouco mais ou menos, com o de outras terras do reino.
Ahi podem os amadores das nossas antiguidades ver qual era o burlesco acompanhamento da procissão do Corpo de Deus no seculo XV.
Mas onde, mais por menor, se acha a noticia do ultimo acompanhamento d’esta procissão, é no Novo regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antiqo regimento que se queimou pelo terremoto de 1755, o qual se conserva no archivo da camara de Lisboa, e foi pelos seus habeis archivistas publicado em 1857.
Ahi se diz que tendo el-rei D. João I invocado S. Jorge na gloriosa e memoravel batalha de Aljubarrota, em opposição aos castelhanos que invocavam S. Thiago, o monarcha triumphante reedificára o castello de Lisboa, debaixo do patrocinio d’este invicto martyr e alferes da egreja catholica, nomeando-o por seu titular. Que toda sua vida trouxera este rei a insignia e divisa da ordem militar de S. Jorge, e a mandára esculpir nas suas armas; ordenando que o dito santo fosse na procissão do Corpo de Deus, a cavallo, sendo a primeira vez que isto se executou, no anno de 1387.
Quando D. João I creou a Casa dos Vinte-e-quatro do povo de Lisboa, se instituiu a bandeira ou estandarte de S. Jorge, composto dos officios que trabalhavam com ferro e fogo, que eram:
Os barbeiros de guarnecer, vulgarmente chamados espadeiros, e os de barbear, que eram os cabeças da bandeira; tendo annexos os serralheiros, ferreiros, ferradores, batefolhas, bainheiros, coronheiros, selleiros, fusteiros, latoeiros de fundição, fundidores de cobre, latoeiros de martello, e os de folha branca, douradores, cuteleiros e frieiros.
Havia lambem outros officios enbandeirados, mas com invocação de diversos santos.
A cargo da bandeira de S. Jorge, porém, é que estava a principal figura da procissão do Corpo de Deus, que era o santo martyr e o seu pomposo estado.
Eis como no citado regimento se regula este encargo:
Oito dias estes da procissão do Corpo dc Deus da cidade, porão promptos cinco pretos armados com insignias do santo, e com seus clarins, tambores e pifano, e os levarão ás cavalhariças de s. m., aonde farão tocar os tambores junto ao cavallo em que o santo houver de montar, e aos do seu estado. Na vespera do dito dia repetirão a mesma diligencia, em companhia dos mordomos da mesa espiritual, levando consigo a sella e demais arreios do cavallo do santo, com o mais que preciso for para seu estado; e tudo entregarão na casa dos arreios aos officiaes, e a estes darão a propina do estilo.»
« Na vespera do dia da procissão mandarão deitar bando pelas ruas d’esta corte, pelos pretos, indo estes armados com as suas insignias, para que a todos conste da saída do santo, e depois os mandarão recolher ás reaes cavalhariças, para na madrugada do seguinte dia conduzirem o cavallo do santo a seu estado, á egreja onde for a sua habitação. Chegado que seja o estado do santo, porão prompto o Pagem e o Alferes, do que logo darão conta aos juizes e aos mordomos e secretario da mesa espiritual, para se continuar a salda em boa ordem. E finda a procissão acompanharão o santo e o seu estado ao castello da sua invocação. E toda a despeza que se costuma fazer n’este dia, não excederão do preciso e necessario; e no caso de haver excesso sera por sua conta."
Depois da extincção da Casa dos Vinte—e—quatro, a camara municipal que veste os pretos, e os gratifica para esta funcção, e da casa real vem os cavallos tanto para o santo, como para o seu estado.
D'antes, a faca em que montava S. Jorge, levava vida regalada, n’um estábulo que esteve por muitos annos ao pé de S. Domingos, nas casas do hospital que os da bandeira tinham para os aprendizes e operarios pobres. Havia a crença de que S. Jorge era advogado das crianças bravas, isto é, que por sua intercessão amançavam, por isso as mães extremosas faziam na roda do anno muitas offertas de palha e cevada para mantença do cavalhinho do santo, com o que elle, eos que lhe tratavam do penso, engordavam que era um brinco! Bons tempos eram esses, em que até havia cevadeiras religiosas, tantas quantas são hoje as civis e militares.
Mas ainda em 1538, no reinado de D. João III, levava o seguinte prestito, que devêra compor um espectaculo famoso, tanto pela extravagancia das figuras, como pela riqueza que n'esta occasião ostentavam as diversas corporações mecanicas, em despique umas das outras. Não admira, pois, que as provincias se despovoassem para vir assistir a esta procissão.
O que, com o pee elle, e os que lhe tratavam do peso, engordavam que nem um banco. Bons tempos eram esses, em que até havia cevadeiras religiosas, tanto quantas são hoje as civis e militares.
Mas ainda em 1538, no reinado de D. João IV, levava o seguinte prestito, que devera compor um espectaculo famoso, tanto pela extravagancias, como pela riqueza que n’esta orcasião ostentavam as diversas corporações mecanicas, em despique umas das outras. Não admira, pois, que as provincias se despovoassem para vir assistir a esta procissão.
1º Os Besteiros.
2° Os Almoinheiros com a Almoinha.
3º Os Pregueiros.
4º Os Ganhadinheiros.
5º Os Albardeiros.
6° Os Almocreves.
7º Os Atafoneiros.
8º Os Carniceiros com seu imperador e rei.
9º Os Tecelões.
10º Os Pelliqueiros com o gato paul.
11º Os Oleiros, Telheiros e Vidreiros.
12º Dois Diabos.
13º Os Merceeiros, Especieiros e Boticarios.
14º O Gigante e o Anjo.
15º Os Correeiros com os castellos.
16º Seis Diabos.
17º Os Curtidores.
18º Tres torres com os moiros.
19º Os Sapateiros com o Drago.
20º Dois Diabos e dois Proviços.
21º Os Cortadores.
22º Os Tozadores.
23º Dois Diabos.
24º Os Alfaiates com a Torre e a Serpe.
25º Os Carpinteiros da Ribeira e Calafetes com a Nau e Galé.
26º Dois Diabos.
27º Os Cordoeiros.
28º Os Esparteiros.
29º Dois Diabos e a representação da dama e galantes.
30º Os Pescadores de Cata que farás.
31º Os Pedreiros e Carpinteiros com o engenho.
32º Dois Diabos e um Principe.
33º Os Vinhateiros.
34º Os Tanoeiros.
35º Outra Torre.
36º Os Armeiros com o Sagitario.
37º Os Cerieiros e Candeieiros.
38º Os Pecheleiros.
39º Os Ourives da prata e do ouro.
40º Os Corretores.
41º Os Tabelliães com tochas de prata.
42° Os Mercadores e Corretores idem.
A este tempo parece que já se tinham probibido aigumas danças e folias, porque não as vemos mencionadas n'esta especie de ordem do espectaculo; sabendo-se por outras relações antigas, que n'esta procissão ia a dança da retorta em que entravam homens e mulheres mascarados, com acompanhamento de gaita de folle; a das espadas, com tamboril e pandeiros; a dos moleiros e moleiras, com violas; e outras mais, com suas folias e chacotas á mistura, que eram umas cantigas entoadas em côro, ao som de instrumentos pastoris.
Ainda no seculo XV levava esta procissão muitas danças, como vimos de um parecer do procurador da coroa, Manuel Lopes de Oliveira, datado de 10 de Junho de 1688, sobre uma contestação que se levantou entre os officiaes da camara do Porto e o bispo d’aquella cidade, documento curioso, que daremos na secção de antiguidades nacionaes. »
É tambem antiquissimo o uso de se armarem as janellas das ruas por onde passa a procissão, como se verá pelo bando, que vamos transcrever, com a orthographia em que o achámos, o que fazemos por excepção, pois não escrevemos para os eruditos.
«Pregão que se ha de dar ho dia ou dias antes do dia do Corpo de Deus.
Ouvide o mandado do Juiz e Regedores da Cidade:
Que todolos Juizes e mordomos dos Officios da festa do Corpo de Deus se fação prestes com todo o que a seus Officios pertencer. E que sejão na See com elles ás sete oras pera sairem com a percição. E que todolos officiais de cada hum Officio acompanhem sua bandeira e Officio. E se vão logo dia do Corpo de Deus Comformar ha casa do Juiz de seu Officio para ordenarem o que são hobrigados de fazer. E da y se irem todos á See com todalas cousas que pertencem a seu Officio pagarem cada hum quinhentos reis. E qualquer official que logo como fformar hum não for catar o Juiz de seu officio pera com elle se hirem ha See pagará cem reis. E os que não forem á percição acompanhar seu officio e bandeira pagarão duzentos reis. E os que sam obriguados a daar omens darmas e os não derem ou não forem taes como devem ser pagarão quinhentos reis. E todo official que não levar seu antremez na mão de panno ou bandeira ou de qualquer outra cousa de festa pagará cem reis. E que todolos moradores da rua direita per honde a perciçam hadir tenham ha dita rua bem limpa e despejada. E tenham ramos e espadanas ás portas. E deitem ás janellas panos sob pena de dozentos reis qualquer que ho não fezer. E ametade das ditas penas serão para quem os acusar e a outra pera as obras da Camara da Cidade. E que todos aquelles que são obrigados de daar touros os deem boons e de receber metidos e ençarrados na praça desta cidade a tempo devido sob pena de os Juizes dos ditos touros pagarem mil reis da cadéa para as obras da Camara. E de ficarem obrigados a daar he emtregar ho tal touro cada vez que lhe for mandado pelo Juiz e Regedores da Cidade.»
Por isto se vê que havia toirada no dia da procissão.
El-rei D. João V, instituindo a patriachal, em 1717, deu nova ordem á procissão de Corpus Christi, que no anno de 1719 se fez com pompa e sequito nunca visto, por forma que deu assumpto a um volume em folio de 240 paginas, composto por um dos laboriosos irmãos Barbosas Machados.
D'elle tomámos as seguintes noticias, sobre o aspecto da cidade n'este dia, que melhor nos fará conhecer a decadencia dos tempos presentes, em que a tão celebrada procissão do Corpo de Deus não é nem uma sombra do que foi.
Quem quer ganhar honra, não se ha de entregar ao descanço.
- Padre António Vieira
Descreve Barbosa Machado primeiramente a magnificencia das armações que se fizeram no exterior da patriarchal e paços da Ribeira, assim come a sumptuosidade de porticos e columnatas que se levantaram no Terreiro do Paço e na praça do Rocio; e depois, descrevendo as ruas do transito da procissão, diz:
«Não só os porticos do terreiro do Paço, o palacio real e a santa egreja patriarchal se ornaram; a mais passou a magnifica providencia do senado. Ordenou que se armassem as ruas e logares por onde estava determinado passar a procissão; e sendo muitas e compridas, todas egualmente mostraram, na maior grandeza, o seu obsequio para com Deus, e respeito ao seu principe.
«Correu a procissão a Tanoaria, Calcetaria, rua dos Ourives do ouro, Douradores, e dos Escudeiros, entrou pelos porticos do Rocio, rua das Arcas, Torneiros, Correaria, Ourives da prata, rua Nova dos Ferros, e ultimamente, depois do Arco dos Pregos, entrou pelos porticos do Terreiro do Paço.
« Todas estas ruas se cobriram com toldos presos em mastros, que estavam ornados de ouro e seda; d'estes mesmos toldos pendiam vinte e tantas medalhas da grandeza de quatro palmos e meio de diametro, distribuidas pelas ruas e em logares differentes. Eram todas doiradas, e ornadas com tafetás carmezins, franjados de euro, e presos em varias partes com galão do mesmo metal, tendo de uma parte o Sacramento entre resplandores, e no reverso as armas do eminentissimo patriarcha em umas, e as armas do senado em outras.
«Todas as ruas pediam larga descripção, pois cada uma parecia ter tomado por sua conta adquirir só, a gloria que todas juntas mereceram. Não se viam as janellas, porque se cobriam de preciosas cortinas e sanefas, franjadas de ouro e prata; e atá as paredes, que entre ellas mediavam, estavam cobertas de lós, damascos, e télas differentes; chegando este adorno aos logares mais altos das moradas. A rua Nova, que fundada em cento e quarenta e nove columnas e pedestaes de marmores, serve com a sua grandeza de lustre famoso, e vaidade illustre á cidade de Lisboa, excedeu, no capricho e no conceito, a toda a admiração. Todas estas columnas se cobriam de sedas lavradas, lós preciosos, e télas brilhantes, guarnecidas de passamantes de oiro e galões de prata. As traves, que sobre as mesmas columnas sustentam as faces exteriores das casas, se ornaram com largas sanefas e pannos bordados, similhantes, na riqueza e no engraçado, ao que se via em toda esta rua. Por baixo dos arcos que lhe formam as columnas, se cobriam as lojas e mais portas, com pannos de raz, tão deliciosos á vista, como dignos de atenção. Os ourives do oiro, que sempre fazem brio de servirem preciosamente o seu principe, agora zelando a sua gloria, e obsequio do Sacramento, não só paramentaram com a maior riqueza as janellas, lojas e as testadas das casas, mas tambem nas noites de vespera e dia da solemnidade, illustratam tudo com muitas luzes, que, fixas nas janellas, e trémulas com muitos candieiros de cristal, converteram industriosamente a noite em dia, parecendo toda a rua uma esphera de estrellas, eum globo de luzes. Até o frontspicio e paredes dos templos, por onde havia de passar a procissão, se armaram com preciosas alfaias, como o admirou a curiosidade nas egrejas de S. Nicoláo, de Corpus Christi, aos Torneiros, e da Magdalena.
O mesmo ornato e magnificencia ostentava o palacio do eminentissimo cardeal Cunha, e D. Antonio Estevão da Costa, armeiro mór de S. M., thesoureiro do Hospital Real de todos os Santos, no Rocio, que não só cobriu as suas paredes com muitos reposteiros bordados, e cortinas de excellentes damascos, mas ainda levantou um soberbo arco, que servia de entrada á rua da Bistesga, para que em toda a parte se continuasse em adornos, mais finos obsequios da Magestade Sacramentada.»
N'este anno já de todo se haviam supprimido as figuras e danças; mas ainda nas provincias continuaram a ir na procissão de Corpus.
Custou muito a privar o povo d'estes espectaculos tanto do seu agrado e enlêvo, havendo repetidos conflictos entre a auctoridade ecclesiastica e as seculares, pendencias estas mui serias!
Na collecção de manuscriptos que possue o meu bom amigo e parente o sr. Julio Caldas, achei em mui curioso parecer, do procurador da coroa, no reinado de D. Pedro II, dado sobre uma queixa que fizeram os vereadores da camara doPorto, do bispo da mesma cidade, por este não consentir que na procissão do Corpo de Deus fossem, entre o Cabido e o pallio, doze cidadãos com suas tochas; por não ter incensado os camaristas; por não consentir que as danças entrassem na egreja; e finalmente por não se querer servir do pallio da cidade. O teor d'este curioso parecer é o seguinte:
«As procissões, assim em quanto a fazerem-se, como quanto á ordem, fórma e precedencias que n'ellas se devem guardar, são todas da jurisdicção dos prelados ordinarios; se bem é verdade que não devem, nem podem, sem ouvir as partes a que tocar, prival-as da antiga posse em que as acharem.
«Os supplicantes tem posto o negocio nas mãos de S. M.: póde o dito senhor, sem embargo da tal posse, ordenar o que for servido, e o que lhe parecer mais decente, e mais reverente em uma procissão d'este alto mysterio e sacramento, como é o do Corpo de Deus. O que supposto, venhamos a cada uma das queixas.
«Quanto á primeira: dizem os supplicantes, e o bispo não o nega, que de tempo immemorial vem doze homens nobres com doze tocheiras entre o cabido e o pallio, allumiando ao Santissimo Sacramento; e vem isto a ser obsequio e veneração que a cidade lhe faz, o que agora prohibe o bispo, dizendo que, conforme ao ceremonial, não dever ir pessoa alguma entre o cabido e o pallio, e que querendo levar as tochas, devem ir pelos lados do mesmo pallio.
«O que eu n'esta materia posso dizer é, que confessando-se a posse, se havia de seguir a restituição, se o negocio se pozesse em juizo contencioso, ou fosse por meio de recurso á coroa, ou por acção de força nova. Porém S. M. póde na materoa resolver o que for servindo, advertindo que já para a procissão de Coimbra se tomou a resolução que consta n'estes papeis. Mas tambem advertindo que o cabido era sómente o que se podia dar por queixoso, em razão da sua precedencia, o que não fez, e por ventura com boa razão, porque os ditos doze cidadãos não lhe precedem por suas pessoas, mas vão, em certo modo, como doze tocheiras vivas, levando em suas mãos doze tochas a allumiar com ellas, e com reverencia, o Corpo de Jesus Christo.
Quanto á segunda queixa, na falta de incensar:
o bispo reconhece que foi descuido; mas como seja materia grave, que pertence á honra dos officiaes da camara, se deve escrever a dito bispo, que não permitta mais similhante descuido, nem falte com as ceremonias honorificas que sempre se usaram.
«Quanto á terceira:
se o bispo reconheceu que as danças se executavam com pouca reverencia dentro na egreja, isto é o que devia emendar. Porém não deve prohibir que entrem na egreja, e que n'ella descancem e cantem, honesta e decentemente, em presença do Santissimo Sacramento, de cujo triumpho é aquelle dia proprio, mais que todos os outros, e é de total festa e alegria da egreja catholica, em que não sómente os fieis em particular, mas o commum das cidades e povos christãos rendem a Deus adorações festivaes, pela incomparavel mercê de estar com elles sacramentado; e tem prejuizo grave em se lhes prohibir esta demonstração de seu rendimento.
«Quanto á quarta:
se deve declarar ao bispo que na procissão ha de ir servindo o pallio da cidade como n'ella e em todas as mais do reino se costumou, no que elle tambem mostra que não terá duvida.
(S. M. se conformou, excepto no ponto de entrarem as danças na Sé.)
terça-feira, 21 de junho de 2011
Solstício de Verão
Deu-me Deus o seu gladio, para que eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
As horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Poz-me as mãos sobre os hombros e dourou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são em seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face, calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
- Fernando Pessoa
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Portugal
Salve, berço do nome lusitano!
Nesta manhã solene.
Que, em volver de ano e ano,
Jamais acabará que a apague o tempo
Da saudosa memória;
Nesta manhã de glória
A ti veio, a ti venho, asilo santo
Da lusitana antiga liberdade.
Tuas lobregas cavernas
Me serão templo augusto e sacrossanto,
Aonde da Razão e da Verdade
Celebrarei a festa.
Ouça-me o vale, o outeiro,
Escute-me a floresta
Aonde do seguro azambujeiro
Seus cajados cortavam
Os pastores de Luso,
Que a defender a pátria e a liberdade
Nesses tempos bastavam
De honra e lealdade.
- Almeida Garrett, Viriato
quarta-feira, 1 de junho de 2011
Cabicanca, de Aguiar da Beira
- Augusto Pinho Leal, Portugal Antigo e modernoAo pé da capella de Nossa Senhora do Castello estão as ruinas de um castello romano, de cantaria.
Tambem perto d’esta capella existiu a egreja de S. Pedro (ainda existem as ruinas da antiga matriz e da respectiva residencia n’um pequeno valle, ainda chamado de S. Pedro, ao sul da villa) antiga matriz da freguezia, que por ser distante da villa, e por se partir a commenda de Christo (do real padroado) metade para Santo Eusebio de Aguiar e metade para S. Pedro de Coruche, foi abandonada, erigindo-se em egreja parochial a de Santo Eusebio.
As más linguas, porém, attribuem o abandono da egreja de S. Pedro ao apparecimento da cabicanca, celeberrima a medonha passarola, que atterrou os aguiarenses.
Conta-se assim o caso.
Appareceu aqui, ha seculos, uma cegonha que foi fazer o seu ninho na torre da egreja matriz (S. Pedro) como é do costume d’estas aves.
O povo ficou horrorisado á vista de tão monstruoso passaro (a que deu o nome de cabicanca) e não só deixou de ir alli á missa, mas até de transitar por aquelles sitios. O mesmo parocho fugiu da residencia com a sua familia, e foi celebrar os officios divinos na capella de Santo Eusebio, ao N. da villa e actual matriz.
Andava o povo assim atterrado, quando aconteceu passar por alli Martinho Affonso (de alcunha Escorrupicha, e de profissão almocreve) armado de uma espingarda, arma recentemente descoberta.
Vendo elle que a villa estava mergulhada em profunda magua, desamparando o povo d’ella a agricultura, os negocios, os divertimentos etc., etc., e curando sómente de se preparar para o juizo final, que julgava proximo, se compadeceu de tanta desgraça e prometteu dar-lhe remedio.
Dirige-se á egreja, espera que o passaro saia do ninho, aponta, dispara e... zás! ferra com a cabicanca estatelada morta no meio do chão. O povo, ao estrondo do tiro e aos gritos victoriosos do cabicanquicida, corre em tropel a ver o enorme bico, o esgalgado pescoço, as longas pernas e o feio corpo do bicho. Todos o queriam ver ao mesmo tempo, pelo que houve pancadaria a valer (e dizem alguns que houve até mortes, mas o auto da cabicanca não o diz).
Não se póde descrever a alegria d’esta gente, nem as festas que fizeram a Martinho Affonso, que foi levado em triumpho por toda a villa, dando-se os mais freneticos vivas, muitos presentes e grande numero de garrafas de vinho (de que o almocreve pelos modos era grande amador) dizendo-lhe todos «escorrupicha» e elle escorrupichava, e d’isto lhe ficou a alcunha de Escorrupicha.
Passados oito dias das mais estrondosas demonstrações de jubilo e agradecimento, se foi o bom do meu amigo Escorrupicha seguindo a sua jornada, coberto de presentes, coroado dos louros da victoria e com um nome immortal que irá de geração em geração até á mais remota posteridade.
O parocho ficou pedindo em todos os domingos um padre nosso por Martinho Affonso, o destruidor da cabicanca.
Advirto porém aos que forem a Aguiar da Beira e tiverem amor ás costellas, que não fallem alli na cabicanca nem no escorrupicha, senão, depois não se queixem!