No tempo que em Espanha reinava Reccesoindo, Rei dos Godos, havia em Nabância (que agora é a vila de Tomar onde está assentado o Convento da Ordem de nosso Senhor IESV Cristo e esteve em tempo antigo o dos Templários) um fidalgo de nome Hermigio, que de Eugenia sua mulher tinha uma filha de nome Irene, na qual com a idade iam crescendo grandes virtudes e esperanças do que depois foi.
Junto à mesma vila havia uma Abadia, de que era Abade Selio, varão douto e santo irmão da dita Eugenia, o qual sendo muito contente da sua sobrinha Irene, tomou a cargo a criação e doutrina dela, e entregou-a a duas irmãs de Hermigio, que com outras muito donzelas religiosas, viviam em congregação e clausura, e lhe deu por mestre para a doutrinar nas letras, um monge principal do seu mosteiro de nome Remígio, homem letrado e tido por virtuoso.
Esta santa donzela como nunca saia daquela clausura mais do que uma vez por ano, no dia de S. Pedro, cuja igreja estava junto aos paços de Castenaldo, senhor da vila de Nabância.
Foi vista por Britaldo, filho único de Castenaldo e tanto dela se enamorou que, por ter encoberto os seus grandes desejos e angústias, por reverência do pai e mãe de Irene e de seu tio o Abade, chegou às portas da morte.
Porque como não se sabia a causa da sua enfermidade, assim não lhe davam remédio.
Entendendo a santa donzela, por revelação divina, aquele mal, e a causa dele, foi ver Britaldo que na cama estava, para o consolar, e o tirar daquele ilícito amor, e fazer com que o converter-se a Deus a quem o devia ter.
Britaldo alegrou-se tanto com a visita e as palavras de Irene, que parecia que havia ressuscitado e à despedida dela, pediu para que lhe promete-se de nunca em seu coração, entrar outrem que não fosse ele.
Ao que ela respondeu, que nunca Deus permitiria que a ele nem a outrem tivesse amor. E pondo-lhe as mãos e dizendo algumas orações, saiu.
Britaldo curou-se rapidamente.
Daí a dois anos em continuação das aulas que Remigio tinha com a sua discípula, entrou o Demónio nele, e a começou a amar torpemente e descobrir-lhe seus desejos: ao que ela respondeu com tanta fúria e aspereza de palavras, que convertendo ele o amor em ódio, e instigado pelo Demónio, determinou vingar-se através de uma estranha arte, que foi dar à inocente donzela uma beberagem composta por tais ervas de que lhe fizeram inchar a barriga de maneira, que verdadeiramente parecia prenhe.
Esta prenhez divulgou-se por toda a terra, com grande vergonha e angústia para santa Irene e seus parentes.
O que vindo às orelhas de Britaldo, e dando a vista testemunho da fama, movido com ciúmes daquilo que quisera a Irene, e do que lhe pedira, e ela lhe prometera, procurou um soldado a quem mandou que a espiasse e como visse ocasião, a matasse.
E assim foi, que saindo ela uma manhã ao rio Nabão que há junto, para aliviar a sua enfermidade e pedir a nosso Senhor que a livrasse de uma infâmia, pois sabia a sua inocência, estando ela de joelhos a orar, veio o soldado e degolou-a, despiu-a e depois deixando-a em camisa, lançou-a ao rio para que se não ficasse a saber do sucedido.
As tias cuidaram que desesperada por aquela vergonha, da sua prenhez, se fora com algum homem a perder-se de todo.
Mas Deus, que nas maiores pressas socorre aos seus servos, não permitiu que aquela santa donzela morresse infamada, mas que se mostrasse a sua santidade e pureza, e revelou ao Abade Selio, seu tio, tudo o que se passara e onde a acharia.
A corrente do Nabão onde foi lançada, tinha-a levado ao rio Zêzere onde se mete, e o Zêzere a levou ao Tejo onde também entra em Punhete, e a corrente do Tejo a levou daí ao pé do monte alto de Santarém que até então se chamou Cabelicastro.
O Abade muito alegre com aquela revelação, revelou o que descobriu ao povo que acreditou nele pela sua muita autoridade e santa vida, e porque Deus o moveu, e todos com grande procissão acompanharam o Abade até ao dito monte.
E onde o corpo da santa estava, as águas do Tejo se afastaram ao redor, fazendo parede e ficando seca a terra onde o corpo estava posto sobre um sepulcro laureado por obra de Deus.
O Abade e a mais gente a quiseram tirar dali e não poderão com força alguma ou engenho movê-lo.
Pelo que entendendo todos que era obra de Deus, somente lhe tomaram por relíquias os cabelos e parte da camisa que tinha vestida. E tornando-se a procissão virão outro milagre, que foi, as águas do Tejo tornarem-se a cerrar cobrindo o sepulcro.
Com as relíquias que o Abade trouxe, fizeram-se outros muitos milagres em Tomar que foi, verem muitos cegos, e andarem muitos aleijados.
Daí em diante começou aquela nobre vila de Cabelicastro a chamar-se Santa Eiria, e por decurso de tempo corromper-se o nome em Santarém.
De maneira que a Santa tem por epitáfio a vila de Santarém, e por sepultura, o nomeado rio Tejo.
A Festa de Santa Eiria celebra-se aos Vinte de Outubro.
- Duarte Nunes de Leão
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