E seguiam-no: abandonavam os campos, as hortas, os barcos, os casais: as crianças amavam-no: as mulheres iam presas da luz imortal dos seus olhos: todos queriam errar com ele pelo país de Genezareth, comendo os frutos casuais dos pomares, bebendo como as reses no fio dos regatos.
Ele explicava Deus de um modo novo: ninguém o conhecia melhor: ele era a consciência viva de Deus. O seu Deus não era Jeová, amigo de Israel, inimigo dos homens: não era o ser solitário, tenebroso, irritável: o seu Deus era o pai, o consolador, o purificador, o eternamente sereno, o eternamente justo.
O Mestre pregava a fraternidade entre os homens, o perdão, a caridade, a humildade, a grandeza, a poderosa virtude do sacrifício.
– Se vos ferirem, oferecei-vos; se vos odiarem, amai; se vos perseguirem, oral! Que mérito há em amar os que nos amam? Uma coisa que singularmente me tocava no ensino que João me repetia, era a condenação dos usos do Templo, dos zelos devotos dos fariseus: com efeito, para que são tantas purificações, tantos cilícios, tantos usos de piedade? Para que hão-de os fariseus trazer nas suas túnicas as tiras de papiro, que são o sinal da devoção, e para que dão a esmola, de pé, nas escadarias do Templo, gritando e elevando a moeda? – Quando tu deres a esmola – dizia o Mestre de Nazaré – que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita.
E esta palavra enchia-me o coração. E alegrava-me o saber que ele não era como os mais profetas, não se retirava para o deserto, não se emagrecia em jejuns não rasgava os seus vestidos, não se feria nas rochas agudas; vivia como um simples e como um pobre e se procurara às vezes os lugares retirados, e amava as montanhas é que ai estava mais na fraternidade dos seus, e no coração de Deus.
João falava-me das mulheres que o seguiam, e eram Joana, mulher de Khouza, Salomé, Maria de Cleofas e Maria de Magdala, que eu conhecia do Acra, em Jerusalém.
Maria de Magdala, aí e em Tiberíade, tinha tido uma vida apaixonada e impura: uma exaltação inexplicável era a essência daquele ser; tinha espasmos, contracções, entusiasmos perturbados: julgava acalmar a impetuosidade da sua natureza febril pelo amor dos homens; ligava-se com os doutores notáveis de então, penetrava em discussões e explicações da Lei, depois andava cercada de fariseus e envolta em devoções; mas tinha o amor dos estofos, e todos os dias chorava. Era uma alma inquieta que buscava alguma coisa: tudo o que fazia era com paixão: a cultura das plantas raras, a criação das moreias em reservatórios, a composição de aromáticos, o estudo das ervas, tudo tratava, ardente e enfastiada. Doente, pobre, foi para Magdala. Aí viu Jesus. pregando. Seguiu-o. Adorava a doutrina do Mestre, e amava a sua figura delicada e bela. Mas tinha fortes impaciências, erguia discórdias com os discípulos, retirava-se ao deserto. Mas voltava, porque a sua dedicação suave pelo Mestre era maior, e domava a sua tenebrosa e confusa natureza.
(...)
E olhava-me, penetrantemente: falava como num sonho, ou a alguém invisível, – Não se pode servir bem a dois amos: um deles se há-de desprezar, outro servir.
Não se adora no mesmo coração a Deus e a Moloch.
Compreendi que o Rabi não tinha confiança em mim: que me julgava um emissário do Templo para lhe escutar a doutrina, e dar testemunho Contra ele.
Respondi com uma dignidade dura: – Tens para mim palavras desconfiadas, Rabi. Chama João. Ele sabe que creio em ti, e que não vou dar-vos testemunhos que o Sanedrim põe por trás das portas dos blasfemadores da Lei. O meu corpo serve e vive no templo, mas muitas vezes o meu espírito tem andado contigo, em desejo e em verdade, no teu lago de Tiberíade. Chama João.
O Rabi considerava-me atento..
– O homem – disse ele – dá testemunho do homem: só Deus conhece os corações.
– Pois bem: tu, que segundo dizem, és hoje o maior vidente de Israel, tu julga, ou condena minha alma.
Dizia isto grave, firme, áspero. Jesus de Nazaré, com o rosto esclarecido, disse-me docemente: – A fé salva.
E depois de um momento: – E quem dizem então os de Jerusalém que eu sou? – Uns, Mestre, dizem que és Elias, ou o Baptista ressuscitado, outros que és o Messias; os fariseus pensam que és um blasfemador ambicioso, ou um simples sincero, a maior parte ignora-te: esta é a verdade.
– E tu quem dizes que eu sou’ – Eu, digo que és um homem justo, e uma elevada consciência das coisas divinas.
Digo que és um homem mandado providencialmente, num tempo humilhado e vil, para erguer as almas, desmascarar as hipocrisias, vingar a pátria! Penso que se tens de ter uma acção no mundo, essa deve ser insurgires-te contra a aristocracia do Templo, contra este espírito estreito de Jerusalém, contra este culto pagão das tradições, contra o fariseu e contra o romano, ser o consolador, ser o vingador! – Homem, em que espírito estás?! Eu vim a salvar as almas, e não a perdê-las.
– E é perdê-las. torná-las justas? É perdê-las, o combater este sacerdócio rico e indiferente, este culto ensanguentado e hipócrita? É perdê-las o quebrar-lhes este destino que as traz escravas, sempre choradas e sempre perdidas, e agora sob o arbítrio dos favoritos imbecis de Tibério? – Essas coisas pequenas não me pertencem: são do mundo.
– Perdoa, Rabi: mas a que vieste então? E tu quem dizes que és, te pergunto eu agora? Queres ficar eternamente pregando e contemplando no lago de Tiberíade, e andar errante pelos casais? E pensas que isso influirá sobre os homens, tanto sequer como uma folha seca? Pensas fazer uma revolução na Judeia, acariciando as cabeças loiras das crianças de Chorazim, e contando parábolas, entre os campos, aos simples e às mulheres? Compreendo que a tua ambição não seja maior, e que te baste a felicidade de um sonho na fraternidade dos simples. Mas então para que vieste a Jerusalém? Para que pregas no Templo? Se tu não és uma iniciativa revolucionária, o que és então? Que és tu, se não és uma forte Intensidade de vontade? As máximas que tu pregas são de Hillel. são de Gamaliel, são de Jesus de Sirach: sei que há coisas novas no teu ensino, mas o que nelas há de grande é a tua força de convicção, e a tua fé, e a tua profunda virtude, e o teu amor do sacrifício, e a tua infinita vontade. De que te servem então estas qualidades, para que as guardas? Não és tu judeu? Não é a tua mãe de Caná? Não podia teu pai ser levado legionário para Roma? De que nos servem essas parábolas, essas ironias, essas respostas excelentes, se elas não vão ferir a riqueza do saduceu, a hipocrisia do escriba, a vexação do romano? Queres abster-te da acção? Imaginas que as prédicas do Templo e o ensino sobre as montanhas, só pela sua verdade abstracta, podem combater, vencer um mundo completo, organizado, civil, rico, amado? imaginas que se pode repetir o milagre das trompas de Jericó? Crês tu que um mundo inteiro, tribunais, templos, ofícios, mercados, sacerdócios, escolas, tudo fortemente ligado, se dissipe como uma visão, porque um homem simpático se ergue num caminho e diz: «Amai-vos uns aos outros, e sereis amados do vosso Pai celeste!» Não! tal não será, Rabi! – Pela vossa incredulidade! que se tivésseis a fé tanto – eu sei? – como um grão de mostarda, e dissésseis àquele monte: passa-te daí!, o monte passaria! Oh! geração incrédula, geração incrédula, até quando estarei entre ti?.
O Rabi dava largos passos, atormentado, doloroso.
– Rabi, Rabi, escuta-me. Eu tenho a tua fé, amo o teu reino de Deus. Mas o teu Deus consola muito em cima, e nós sofremos e choramos muito baixo na terra.
Jesus estava tomado de incerteza, de amargura. Eu dizia: – Escuta, Rabi: consinto que só pela tua palavra, tu possas realizar o teu reino de Deus. Mas então deixa esses galileus simples, liga-te aos homens que têm a força, a ciência e o segredo das coisas humanas: nós seremos a acção, sê tu o nosso Messias na Judeia. nada se faz sem um profeta! Como tens tu pensado realizar o teu reino de Deus? Pela doçura e pela paciência. ou pela força e pela revolta? Não podes hesitar, se pensas.
Queres fazer um renascimento, com os galileus que te cercam, com os publicanos infelizes, com os doentes que curas, com os miseráveis que consolas, com as mulheres que te amam, com as crianças que te sorriem? – Deus esconde muitas coisas aos sábios, que revela às crianças.
– Para que pregas então no Templo, contra os fariseus e os príncipes? – Deixa pelo espírito dos simples e crianças operar-se a regeneração! – Na verdade, Rabi, dize-me: entendes tu que no mundo nada vale, e que só ø teu ideal pode dar felicidade e sossego? Professas tu o desdém? – Só o desdém dá a paz.
– Dá a inércia, o sacrifício e as virtudes passivas. E se amanhã tu pudesses começar a ver realizado no mundo esse reino dos pobres, dos simples dos pequenos? Se pelo menos visses uma terra bem preparada para a tua palavra? Se Visses tudo transformado por uma acção enérgica, revolucionária, pela nossa acção? Jesus caminhava, inquieto, o seu olhar vibrava. As minhas palavras davam-lhe inesperadas perturbações.
Nós víamos o Templo luzir na branca polidez da pedra sob o Luar: eu dizia-lhe, profundo: – Olha, vê o Templo, hoje ali tudo é intriga, artifício, aparato, riqueza, sangue, hipocrisia, vaidade: amanhã seria o lugar mais santo da Terra.
Jesus cobria o Templo com um vasto olhar, cheio da fulguração do seu desejo. Eu tinha-lhe tomado as mãos, dizia-lhe baixo, junto à face: – Ouve: em Jerusalém há descontentes: alguns membros do Sanedrim estão irritados com a família de Elanan, com Beotos; Gamaliel não ama o Templo; o baixo povo do mercado detesta fariseus e escribas, é nosso; a Galileia é nossa, a Perea é nossa; mandar-se-ão emissários a Jopé: toda a Judeia se erguerá: tu serás o profeta. Queres? O teu sonho do lago de Tiberíade será então vivo, real, palpável, existente sob as nuvens! – Queres? A noite era imortalmente bela: havia uma bondade no ar: o mundo parecia-me possuído de um elemento diverso.
Eu falava confusamente, ora contra os fariseus, ora contra os romanos: e não conhecia nem a força de Roma, nem o poder sacerdotal, nem a inércia de um povo egoísta. Uma grande tentação cativava o espírito do Mestre. Eu dizia-lhe, tomando-lhe as mãos: – Rabi, Rabi, depois do fariseu, será a vez do romano. Tu serás o maior da Judeia: terás glorificado o pobre, terás humilhado o rico, terás aniquilado o hipócrita, terás expulso o romano: serás pela justiça igual a Ezequiel, pela força igual aos Macabeus: serás como David, terás a Palestina desde o Jordão até ao mar, e serás o rei de Israel.
Eu falava exaltado: mostrava-lhe Jerusalém e dizia-lhe: – Terás a Palestina até ao mar, serás o rei de Israel!.
Mas Jesus, erguendo a mão, mostrando-me com um gesto elevado e transcendente o céu cheio da Lua serena, o inefável silêncio, a pura beleza do elemento, o profundo mistério onde Deus habita, disse-me: – Vai-te: o meu reino não é deste mundo.
Olhei longamente o Rabi, lamentei o seu desdém, sorri da sua palavra: e calado, concentrado, saí pelo caminho de Betfagé. - Eça de Queirós