D. Gualdim estremeceu. Teve a sensação de que não estava só. E, retirando do rosto as mãos, ergueu o busto e voltou-se num vagar mal contido. Os seus olhos habituados à meia-luz ambiente descortinaram logo a figura magra e alta do superior do convento, e o seu olhar indagou de tão honrosa presença. O superior, numa voz baixa e pausada, que se esforçava por ser humilde, elucidou:
- Perdoai-me, irmão. Não desejaria interromper a vossa oração piedosa... mas tenho algo de importante a comunicar-vos.
- Falai sem receio. Estava apenas dando graças a Deus pela dita deste silêncio, depois do tremendo inferno que foi a conquista de Lisboa.
- Bem mereceis este repouso, irmão. Por isso mesmo me aflige interromper-vos.
- É esta a missão de cavaleiros e monges.
- Sim, é essa a nossa missão.. Já o disse D. Sancho de Castela: "o som da trombeta transforma-nos em leões e o do sino em cordeiros..." Que se cumpra, pois, em nós, a vontade de Deus!
D. Gualdim sorriu com o respeito devido ao seu superior.
- Mas decerto não viestes aqui para nos enaltecerdes...
Foi a vez do monge sorrir também.
- Oh, não! A minha presença nesta cela deve-se a um desejo do nosso rei D. Afonso Henriques.
Os olhos do cavaleiro-monge brilharam mais intensamente. O seu busto endireitou-se com estranha altivez.
- El-rei vai sair de novo a campo?
Com um sinal de cabeça o monge confirmou:
- Sim.. .O sangue ferve-lhe nas veias.. .o fervor à causa cristã é indomável!
D. Gualdim já não parecia o mesmo homem humilde e abatido de há pouco.
- Quando precisa el-rei de mim?
- Amanhã, ao romper do dia.
- Que Deus seja louvado! Lá estarei com os meus homens.
Sorriu o monge superior do convento.
- El-rei aprecia-vos muito. Contou-me a vossa proeza, quando subistes as escarpas do monte cujo terreno parecia desfazer-se debaixo dos pés...Falou-me dos pedregulhos que iam caindo por todos os lados e só por, milagre vos não acertaram...E disse-me como fostes forte sempre avançando de armas nos dentes, para que as mãos ficassem mais livres e vos ajudassem a subir...
D. Gualdim começou a impacientar-se.
- Por Deus!.. .Nada fiz que os outros não fizessem também.
- Mas fostes o primeiro a chegar à muralha...
- Foi el-rei que vos contou tudo isso?
- Foi ele, em parte, e os outros ajudaram-no.
- Os outros?
Sorriu e respirou fundo D. Gualdim. Depois, como se falasse consigo próprio, o cavaleiro-monge declarou numa voz serena e firme:
- Com um rei como o nosso, que sempre está onde a luta se trava mais renhida, não podem haver descuidados ou cobardes.. .Eu fiz apenas o que me cumpria fazer.
- Por isso el-rei vos reclama de novo em campo...
- E lá estarei, se Deus quiser, para maior honra e glória de Deus!
- Ámen...
E silenciosamente, como chegara, o superior saiu da cela de D. Gualdim.
Só, este ficou um momento imóvel, olhando para um ponto vago no espaço. Depois os seus joelhos voltaram a roçar a terra, o seu busto esguio tornou a encurvar-se e as suas mãos mais uma vez cobriram o seu rosto, de olhar brilhante e feições vincadas. Em volta, o silêncio continuou silêncio e a penumbra, penumbra. Só o seu pensamento, feito senhor absoluto do ambiente, cresceu como único vencedor...
No horizonte, uma nesga de luz impôs a sua presença às trevas da noite. Madrugada fresca de São João. Em massa assim indefinida, caminhava o exército lusitano. D. Afonso Henriques voltou a ouvir-se. Queria falar a um dos seus cavaleiros. Foram buscá-lo sem demora.
Subiu sonora a voz do rei, como sempre que dava uma ordem.
- Aproximai-vos, D.Gualdim!
Submisso mas isento de humildade humilhante, o cavaleiro-monge curvou a cabeça.
- Dizei, Senhor.
Voltou o rei a falar com altivez:
- Vou deixar aqui o exército às ordens de D. Ordonho. Preciso, primeiramente, de fazer um reconhecimento.
Admirou-se o cavaleiro.
- Vós? Seria perigoso! Ficai, eu me sentirei honrado com a vossa mercê, se puder fazer esse reconhecimento em vosso lugar!
Franziu o rei as sobrancelhas espessas.
- Disse-vos que desejo fazer um reconhecimento. E não lego em ninguém esse meu desejo!
Arriscou ainda o cavaleiro-monge:
- Mas... ides sair do campo?
- Sim. Sairei disfarçado e acompanhado apenas por vós, D. Gualdim...
Curvou o monge a cabeça, para logo olhar de frente o seu rei.
- É grande a honra que me concedeis, Senhor! Tão grande como a responsabilidade, que me cabe, de vos trazer, de novo são e salvo.
Sorriu ligeiramente o rei.
- Nada temais! Quero apenas chegar junto do castelo dos mouros antes que o sol rompa. Preciso de descer para Alcácer, e não quero deixar mal defendidas as nossas costas, com focos que poderão perder-nos. Este castelo terá de ser nosso. Mas preciso de saber a hora de o tomar.
- O castelo será vosso, como o têm sido os outros que tendes desejado.
- Sim! - confirmou alegremente o rei - Depois de Lisboa renderam-se os castelos de Almada, Sintra, Palmela. Este fica perto de Lisboa, e também terá de ser nosso, repito!
- Eu repito também, se o permitis: sê-lo-á em breve!
A expressão dura de D. Afonso Henriques adoçou-se. Mas a sua voz soou áspera em breve, como sempre.
- Aprontai-vos e segui-me.. .Tenho pressa!
A nesga de luz que impunha a sua presença às trevas da noite alargou-se mais. E o recorte do exército português tornou-se mais nítido na cinza rosada da manhã. A areia ensaibrada rangeu sob o metal do calçado do rei português. Do lato de todo o seu corpo imponente, D. Afonso Henriques olhava o castelo, sobranceiro e sereno. Tudo parecia calmo à volta. A própria pureza do ar, correndo como brisa, parecia um convite para tornar cristão mais aquele bocado de terra. O rei cofiou lentamente as suas barbas, enquanto lentamente, contra o seu costume, dizia ao companheiro:
- Parece um castelo de mouros encantados! Não se vê ninguém...
- Custa a crer que nem tenham vigias!
- Quem sabe?
- Cuidado, Senhor! Descobri além um vulto a mover-se...
O rei de Portugal franziu as sobrancelhas, numa concentração, enquanto dizia como se falasse consigo próprio:
- Vim aqui para saber se a hora era propícia à conquista deste castelo. Mandai-me um sinal do Céu, ó Deus Todo-Poderoso! Mandai-me um sinal!
D. Gualdim guardara silêncio. Mas vendo que o vulto corria agora direito a eles, preveniu:
- Descobriram-nos! Vão dar o alarme!
O rei semicerrou os olhos, numa tentativa de ver melhor na meia-luz da madrugada nascente.
- Reparai bem, D. Gualdim! O vulto que corre para nós é de um cão enorme!
O cavaleiro-monge concentrou todos os seus sentidos nesse vulto que corria direito a eles e se distinguia perfeitamente.
- Assim é, meu Senhor! Mas nunca vi um alão tão forte e tão grande! Teremos de o matar antes que dê o alarme...
Já o cão se dirigia na direcção do rei de Portugal. D. Gualdim gritou, quase ao mesmo tempo que puxava a espada:
- Cuidado Senhor!
Mas D. Afonso Henriques suspendeu-lhe o gesto. O alão mal chegara junto do rei conquistador começara a lamber-lhe as mãos, dando saltos de imensa e estranha alegria. D. Afonso Henriques sorriu.
- Reparai, D Gualdim: o alão rende-me vassalagem! Recebe-me como a um libertador, ou como se me conhecesse há muito...deve ser este o sinal do Céu! O avanço das nossas tropas far-se-á imediatamente e o castelo será nosso. O alão o quer!
Como num eco, D. Gualdim repetiu:
- O alão quer!
E desta frase lendária, que ficou para todos os tempos, resultou mais uma conquista de mais uma praça e o nome da terra que hoje se chama Alenquer. O sinal do Céu chegara o rei de Portugal obedecera! E quando o Sol, em toda a sua pujança, longa das lamúrias da noite, dardejava os seus raios quentes sobre a terra morena, já o estandarte do rei de Portugal flutuava no alto do que fora um castelo dos mouros!..."
Autor: Domínio Popular
Fonte: Biblioteca de Sintra
Raskolnikov - O Secreto Palácio de Sintra